Anna Karenina é pura emoção, aventura e descontração! Já pulou de paraquedas, já andou de balão, já comeu cobra, piranha e outras iguarias mais pelos quatro cantos do mundo. Ela, definitivamente, não tem medo de experimentar coisas novas, mas isso não é tudo que temos sobre ela! Nascida em Belém do Pará e criada em Fortaleza, Anna Karenina hoje mora em Nova York, EUA. Professora universitária por 12 anos nos EUA, surpreendeu a muitos quando largou tudo para lecionar para adolescentes em uma escola pública de ensino médio, no Bronx – a mudança de carreira mais feliz de sua vida – segundo ela! Casada com Leonard e com um filho de pouca idade e muita personalidade, Anna, mais madura, mais sábia e plenamente mais feliz, nos conta de suas experiências pessoais, acadêmicas e profissionais que lhe renderam aqui o título de Mulher de Vitórias da vez. Curioso? Curiosa? Vamos, então, conhecer esta bela, apaixonante e articuladíssima entrevistada.
Como foi moldada a Anna Karenina que conhecemos hoje?
Desde criança, sempre fui apaixonada por línguas – não só estrangeiras, mas também a minha. Português sempre foi minha matéria preferida na escola, mas ao longo do tempo fui aprendendo também inglês, italiano, francês e espanhol. Minha irmã mais velha começou a dar aula de inglês quando era bem jovem e eu, que na época tinha uns 8 ou 9 anos, ficava supercontente quando ela me ensinava palavras e expressões novas em inglês. Lembro de minha irmã ouvindo muitas bandas inglesas como Queen, Beatles, Pink Floyd, Supertramp. Eu ficava louca para entender o que as canções diziam e pedia que ela traduzisse. Quando comecei a fazer aulas de inglês, já tinha uma boa base de vocabulário. Tenho que agradecer à minha irmã Ana Paula por me incentivar e ajudar a aprender inglês, que se tornou uma língua de grande importância na minha vida, fato do qual eu nem desconfiava na época.
Hoje, sou formada em Letras (Inglês e Português) pela UECE e tenho mestrado em Creative Writing na City University of New York (CUNY). Comecei o doutorado em Linguística no Graduate Center da CUNY, mas parei quando engravidei e ainda não tenho planos de retornar. Coisas da vida real!
O interesse pela língua italiana veio da minha mãe, pois ela adora os filmes clássicos italianos (ou filmados na Itália), como A Princesa e o Plebeu, Candelabro Italiano, Dio Come Ti Amo… E ainda gosta muito de escutar canções italianas. Quando comecei a faculdade de Letras, me inscrevi na Cultura Italiana da UFC e não descansei enquanto não aprendi a falar italiano fluentemente. Minha mãe também gostava muito de francês, tendo estudado essa língua por 2 anos quando estava no colégio. Depois que estava já morando em Nova York estudei mais ou menos 1 ano de francês, o suficiente para entender bem, embora me sinta tímida na hora de falar. Gosto muito de ler livros e ver filmes em francês. O latim que estudei na faculdade de Letras me deu uma base muito boa para aprender todas essas línguas românticas, especialmente o espanhol, que nunca estudei formalmente, mas o falo e escrevo fluentemente. Comecei lendo livros de Gabriel Garcia Márquez e Isabel Allende (dois de meus escritores favoritos desde a adolescência) em espanhol, pois sempre achei fascinante isso de ler obras em sua forma original, sem a interferência da tradução. Depois que vim morar em Nova York tive contato com muitos hispanos (entre alunos, amigos, colegas do mestrado e, alguns anos depois, meu atual marido e sua família) e, toda oportunidade que tinha, tentava aprender com eles. Não quero parar nessas 5 línguas, gostaria ainda de aprender russo e japonês, e quem sabe algumas outras mais.
Como você gasta seu tempo livre?
O meu passatempo preferido é ler. Não há nada como cair no fundo de uma rede com um bom livro e se esquecer do mundo! Alguns dos meus autores favoritos são (além dos dois já mencionados acima) Jean-Paul Sartre, D. H. Lawrence, Fernando Sabino, Milan Kundera, Amy Tan, Charles Dickens, Julia Alvarez, Rachel de Queiroz, Ernest Hemingway, William Faulkner, William Wordsworth, Roald Dahl… A lista é bem longa, na verdade! Outras coisas que amo fazer quando tenho tempo livre: brincar com meu filho Marcello, cantar, dançar e tocar violão. Acho que essa minha obsessão pelos livros é culpa dos meus pais, que me batizaram com o nome da clássica heroína de Tolstoy: Anna Karenina. Desde pequena queria ler o livro, mas minha mãe não deixava – só depois que eu completasse 18 anos porque o livro não era para crianças e era muito trágico. Então, enquanto esperava os 18 anos, fui lendo outros livros e tomei muito gosto por isso. Mas assim que atingi a maioridade, ataquei as 800 e tantas páginas de Tolstoy com voracidade. É uma obra belíssima, cheia de pungência e angústia que retrata a posição da mulher na sociedade russa do século XIX (que na verdade poderia ser em qualquer outro país, em qualquer outro tempo) de uma forma bem realista e tocante. Isso me afetou muito e entendi o porquê de minha mãe me fazer esperar até que tivesse uma certa maturidade para entender e apreciar essa obra. Esse livro também me abriu os olhos para a realidade de limitações da mulher na nossa sociedade e me deu uma vontade enorme de desafiar o status quo. Tenho vivido sem cometer grandes loucuras, mas decidi então que viveria minha vida nos meus próprios termos e não deixaria que a opinião de pessoas alheias me tolhesse. Como disse Milan Kundera, “A vida humana acontece só uma vez, e não poderemos jamais verificar qual seria a boa ou a má decisão, porque, em todas as situações, só podemos decidir uma vez. Não nos são dadas uma primeira, segunda, terceira ou quarta chance para que possamos comparar decisões diferentes.” Perder tempo julgando decisões já tomadas é tolice, e julgar as decisões dos outros é ainda menos produtivo. Ao final das contas, prefiro me arrepender de algo que fiz do que de algo que queria ter feito e não fiz.
Qual o peso que a palavra “amigo” tem em sua vida?
As amizades são muito importantes para mim, meus amigos são como família. Talvez seja um fenômeno natural em quem migra para um país diferente, longe da sua família. A gente se apega aos amigos de uma forma mais forte. Tenho meus amigos de Fortaleza, amizades que começaram ainda na escola, quando era bem jovem, que duram até hoje, apesar do tempo e da distância física. Essas são pessoas que me conhecem de uma forma que os amigos que conheci aqui em NY não poderiam me conhecer, e vice-versa. Conheço muitas pessoas, mas amigos próximos mesmo são poucos e extremamente preciosos, porque são pessoas em que confio e das quais gosto profundamente. Amizade para mim é um relacionamento sério, quase como um matrimônio, principalmente agora que estou mais velha; antes era mais importante a quantidade que a qualidade. Agora é o contrário, sem sombra de dúvida!
Qual o seu bem mais precioso?
O que é mais importante para mim é a família: a dor mais forte que senti em minha vida foi a perda do meu pai em 2013. Minha mãe é extremamente preciosa para mim: é minha melhor amiga, minha conselheira, e a pessoa que mais me ama no mundo com um amor incondicional, sem ressalvas. Ela sempre foi uma força sobrenatural em minha vida – ninguém me conhece e entende como ela! É um exemplo forte de mãe, de esposa, de mulher. Dona Olivia não se cala nem se intimida ante situações desafiadoras e nem tem medo de se pronunciar quando vê algo errado.
Em que você deposita a sua fé?
Fé é essencial na vida. Temos que acreditar em alguma coisa para podermos viver; sem fé apenas sobrevivemos. Minha mãe é muito religiosa e criou a mim e minha irmã na religião católica. Uma coisa de que senti muita falta durante o lockdown aqui em NY foi de ir à missa. Missa virtual não é a mesma coisa. A primeira vez que entrei em uma igreja depois que começaram a flexibilização social foi inesquecível: a sensação de comunidade, de união que se sente quando estamos em meio a outras pessoas com o coração e o pensamento voltados para o mesmo foco é indescritível. Acho isso muito importante mesmo. Seja qual for a religião, é importante ter uma crença, ou, ao menos, cultivar a espiritualidade de alguma forma.
De onde vem sua força e determinação de vida?
Sempre fui muito determinada e, embora não aja sem pensar, ajo. Não sou de ficar sonhando e me perder em devaneios enquanto “espero” as coisas acontecerem. Se quero mesmo algo, vou lá e tento consegui-la. Há coisas que não sabemos realmente se são para nós, mas só há uma maneira de descobrir, né? Tem que ir lá e tentar. O pior que pode acontecer é não dar certo (ou descobrir que você não quer tanto como pensou inicialmente). Esse é o segredo para não se carregar frustrações pela vida. Voltando à história da fé: quando se acredita em Deus, tudo fica mais fácil. A fé dá uma força que impulsiona e não deixa desistir. Junto à fé, vem a esperança, que é extremamente importante para continuarmos nosso caminho que nem sempre é fácil ou leve – especialmente nesses tempos de pandemia, quando se vive em meio a tanta incerteza. Força pode vir de outras pessoas ao seu redor também: depois que tive meu filho Marcello em 2017, nasceu em mim uma vontade louca de ser uma pessoa melhor, de me superar e de ser um bom exemplo para essa pessoinha que está crescendo sob meus cuidados. É uma responsabilidade imensa e é também um desafio. Levo isso de ser mãe muito a sério, talvez porque isso ocorreu já numa idade mais madura. Cada vez que me sinto triste ou cansada da vida, olhar para o meu filho e poder abraçá-lo me dá força para fazer seja o que for necessário.
Viajar é preciso?
Amo viajar, sair de minha zona de conforto, me misturar a outras pessoas, outras culturas, outros idiomas: um grande deleite – dentro e fora do meu próprio país natal. Embora tenha saído do Brasil bem jovem, eu continuo fascinada por ele, principalmente pelo Nordeste com suas comidas, praias, música… Outro país que adoro é a Itália. Não moro lá porque não posso morar em dois lugares ao mesmo tempo! Mas sempre que posso vou visitar os amigos que tenho por lá, perambular por aquelas cidades maravilhosas e cheias de história. Adoro Florença, Veneza, Roma e Milão. Tenho uma amiga de infância morando na Sardenha, uma ilha simplesmente mágica e inesquecível. Gosto do Mar Mediterrâneo, gelado, mas que com sua beleza irresistível, acalma o ânimo mais estremecido. O Caribe tem também ilhas lindas e muita história (bem mais recente, mas não menos importante) e seu mar é bem mais caliente – Antígua e uma das minhas ilhas preferidas. Tenho uma paixão especial pela República Dominicana. Já fui lá várias vezes, meu marido Leonard nasceu lá. A comida é uma delícia – especialmente o mofongo e o majarete. As pessoas são alegres e calorosas (me lembram muito os nordestinos); sinto-me em casa quando os visito. Viajar é bom demais para a cabeça, para o corpo e para a alma… Aqui nos EUA, um estado de que gosto muito é o Arizona. O deserto de Sedona é de tirar o fôlego com seus cactos, suas grutas, suas formações montanhosas vermelhas… sem falar no Grand Canyon. O mundo tem tantas belezas e há tanto para se ver e aprender que não é justo que tenhamos uma vida apenas para experimentar tudo isso! A lista de lugares que ainda quero visitar é bem longa. Além disso, conhecer lugares novos tem um gostinho mais especial ainda por causa do meu companheirinho de 4 anos – ele também adora viajar. Quando falamos em pegar um avião, ele já fica todo animado. Gosta de ficar em hotéis e ir a lugares diferentes. Já fala 3 línguas (inglês, português e espanhol) e espero que aprenda muitas outras futuramente. Assim, aonde ele for no mundo, vai poder se comunicar.
Fale um pouco de sua experiência em Nova Iorque.
A mudança para NY aconteceu porque eu queria fazer mestrado em inglês e como havia passado férias em NY quando me formei, me apaixonei pela cidade e decidi que voltaria para estudar aqui, o que aconteceu por volta de um ano mais tarde. É uma cidade intoxicante, bem difícil de descrever embora muitos já o tenham tentado, pois está muito cheia de tudo – o mundo inteiro é representado aqui em uma só cidade. Todas as culturas, com suas línguas, comidas, cheiros, cores e roupas, todos os pedacinhos do mundo se juntam aqui como um grande quebra-cabeça que está constantemente se reorganizando. Não é uma cidade para acomodados ou medrosos. Ao mesmo tempo em que é uma cidade cheia, Fernando Sabino tinha razão quando a chamou de “Cidade Vazia”. NY é contraditória assim, e agora que estamos em meio a uma pandemia que paralisou tudo por algum tempo, vemos a sua vulnerabilidade, pois sem a conexão humana, a cidade fica realmente vazia em vários sentidos.
Seja como for, continua sendo uma cidade de oportunidades: quando cheguei foi como se um mundo inteiro estivesse a meus pés, de repente. Enquanto esperava começar o mestrado, trabalhei por um tempo como modelo (fashion model) e depois que voltei a estudar, voltei a ensinar também, em um curso de inglês para adultos – American Language Communication Center. Foi uma experiência fascinante, pois aí tinha alunos de muitos países diferentes; aprendi muitas coisas com eles, experimentei comidas diferentes, abri minha mente para culturas de países como a Índia, Bangladesh, China, Coreia do Sul, Rússia, Tajiquistão e Egito.
Beleza é essencial?
A beleza que necessitamos cultivar primeiro, a mais importante, é a interior. A de fora tem sua importância, mas é arbitrária e dependente muito de quem a observa. Quando me mudei para os EUA e comecei a ler as revistas femininas daqui, descobri que o ideal de beleza americano é bem diferente do brasileiro: ter coxas e pernas grossas aqui é esteticamente indesejável, enquanto no Brasil o ideal é a mulher ‘gostosa’, com tudo farto (menos a cintura, que deve ser fina). Eu, que sempre fui magra – acho que no colégio os meninos nem me olhavam! – quando cheguei aqui, era, às vezes, até perseguida na rua. Sempre tinha algum cara querendo falar comigo, várias vezes fui convidada para fazer ensaios fotográficos e seguir a carreira de modelo. Achavam minha beleza “exótica”. Eu achei superinteressante toda essa atenção, chocante até, algumas vezes! Cheguei a fazer alguns trabalhos como modelo fotográfico e de passarela também e, quando depois de um tempo, começaram a sugerir que eu estava “engordando” e que tinha que fazer dieta, larguei a profissão de vez. Eu sabia que era exagero. Obviamente dois quilos a mais não me faziam “gorda” (na verdade eu sempre quis ter um pouquinho mais de carne sobre meus ossos, mas meu metabolismo é rápido, não engordo facilmente e eu estava bem feliz com meus dois quilos extras). Minha rebeldia inerente não me deixa curvar sob imposições ilógicas dos outros. Ser modelo não era meu sonho, era algo que eu fiz por um tempo porque a oportunidade se apresentou. Foi legal, conheci muita gente e muitos lugares e acho que também me feminizou um pouco, porque eu sempre fui meio moleca, sem ligar muito para maquiagem, cabelo, me arrumar, essas coisas. Ainda me sinto mais confortável andando por aí de jeans e chinelas, mas sei me vestir de acordo com a ocasião, aprecio fashion designers de talento, como Roberto Cavalli, Tom Ford, Carlos Miele, Nicole Miller e curto assistir aos desfiles da Fashion Week aqui no Bryant Park em fevereiro e setembro para ver o que está acontecendo no panorama da moda.
Você se preocupa com a saúde?
Manter-se ativa é essencial. Por outro lado, isso de fazer dietas rigorosas, controlar o que se come, não funciona muito para mim. Como minhas saladinhas aqui e ali, tento comer coisas saudáveis todos os dias, mas não rejeito uma boa pizza, uma massa cremosa, um hambúrguer suculento, se me bate a vontade. Não sou comilona, em geral, como em pequenas quantidades e sempre estou me mexendo – durante praticamente toda a minha vida adulta fui à academia fazer cardio, musculação, ioga, ou pilates, andava muito de bicicleta com meu marido Leonard, e ainda jogava basquete com ele. Ultimamente não tenho ido à academia, mas com um filho de 4 anos não tem como ficar parada! Jogo futebol com ele, apostamos corridas, fazemos longas caminhadas pelo nosso bairro (Forest Hills, no Queens), que é bem bonito e arborizado, ainda mais agora na época da Primavera. Nossas caminhadas são muito para a nossa saúde mental também. E sempre tenho comigo palavras cruzadas. Temos que exercitar a mente também.
Fale-me um pouco sobre sonho, medo, futuro e felicidade. Parece-lhe uma combinação muito louca?
Não. A vida mistura tudo mesmo. Nós que temos a mania de compartimentalizar tudo. Bem, como gosto muito de ler, sonhava em ser escritora quando criança. Sonhava também em viajar pelo mundo (amava os livros de Júlio Verne, especialmente “Viagem ao Mundo em 80 Dias” e “5 Semanas em um Balão”). Quando estava no 2° grau, publiquei algumas poesias no Jornais O Povo e Diário do Nordeste, mas quando comecei o mestrado em Creative Writing na CUNY, passei a me concentrar mais em contos. Cheguei a publicar alguns em antologias multiculturais, chegando até a fazer Readings (leituras em público) em lugares como Bowery Poetry Club e KGB, no Greenwich Village. Nunca havia imaginado que um dia teria minhas histórias publicadas em outra língua que não o Português! O frisson de ser publicada em inglês foi bem grande, mas depois meio que passou. Nem sei exatamente, mas fui parando de escrever ficção. Acho que era uma daquelas coisas que depois que fazemos, já podemos dizer que a fizemos e então passamos a explorar outras coisas. Também acho que era uma melhor escritora quando estava um pouco infeliz, quando me sentia angustiada. Eu explico: meu primeiro casamento começou a derrocar logo depois que nos mudamos para NY – começamos a ver as coisas de um modo muito diferente. O diálogo foi ficando mais e mais difícil e eu era muito jovem e impaciente. Depois de 3 anos, nos divorciamos. Somos amigos hoje; nos falamos ocasionalmente; conheço sua esposa e ele conhece o Leonard, todo mundo se dá bem. Na época foi triste para nós dois – eu, como boa moça católica, tive muitos conflitos interiores antes de tomar essa decisão, pois casamento era para ser coisa para a vida toda. Contudo, quando eu imaginava a minha vida “presa” a alguém que eu não amava mais da mesma forma, isso se tornou uma tortura emocional mais forte que os princípios religiosos.
Acredito que as coisas sempre acontecem por um motivo, nós é que, às vezes, não sabemos, no momento, qual é. Poucos meses depois que saí de casa, conheci o amor da minha vida. Começamos como amigos, nos apaixonamos e há 10 anos estamos casados. Leonard é um homem calmo, paciente e observador. Indubitavelmente o parceiro perfeito para mim – ele me centra, me mantém com os pés no chão e, ao mesmo tempo, me deixa bem livre, e me deixa ser eu. Ele aprendeu a falar português, viaja sempre para o Brasil comigo e me apoia em todas as loucuras que invento. Meu sonho agora é ficar velhinha ao lado dele e viver uma vida longa e com saúde para ver nosso filho Marcello crescer e se tornar um homem bom como seu pai (até agora parece que ele puxou mais a mim em termos de personalidade: Marcello é impaciente, se zanga rápido, não para nunca… será que estou pagando pelas minhas traquinagens com minha mãe? Por outro lado, ele também tem o charme do pai e conquista as pessoas logo de cara.
Nunca pensei que fosse ser uma dessas mães cujo filho é o centro do universo, mas a gente não sabe que tipo de mãe vai ser até nos tornarmos uma. Já fui várias coisas na vida, mas o que eu quero realmente fazer bem é criar esse serzinho humano para que ele seja uma pessoa boa, compassiva, que use sua inteligência para fazer a diferença na vida dos outros. É uma tarefa hercúlea, isso de criar outro ser humano. Passo noites acordadas preocupada com tudo que pode dar errado e tudo que pode dar certo; tenho essa tendência a me preocupar com coisas que estão super distante no futuro (ou, na verdade, nem tanto! O tempo voa.), e virar mãe só exacerbou tudo isso. O meu maior medo é o medo do incerto. Uma coisa que essa pandemia me ensinou é que simplesmente não podemos nos preocupar com coisas que ainda não aconteceram. Vai que elas acabam nem acontecendo! Daí você perdeu um tempão obcecado com possibilidades irreais… tempo que não se recupera. Então estou aprendendo a arte de se viver o momento e deixar o futuro para o futuro.
Quase tudo o queria ter feito na vida, fiz. Para mim isso é sucesso – o oposto do medo. Eu queria morar em outro país. Queria ser escritora. Queria ser professora como minha mãe. Queria falar várias línguas. Queria ter filho. Queria viajar. Ser rica em dinheiro não é exatamente minha prioridade: contanto que tenha o suficiente para que não me falte nada, para que possa fazer o que gosto, estou bem. Seria legal ganhar na loteria (o problema é que não jogo), rapidinho encontraria muitas coisas para fazer com o dinheiro, mas não é algo que me impulsione. Uma pessoa bem-sucedida para mim é quem está de bem consigo mesmo e com os outros; que passou por desafios e os enfrentou com dignidade. Claro que nada é perfeito na vida, mas assim que entendemos essa verdade, então a ideia de sucesso se torna mais clara: o segredo é não desistir facilmente quando realmente queremos algo (mas também reconhecer quando é o momento de dar uma pausa e reavaliar a situação quando aparecem obstáculos). E como o Fernando Sabino dizia, “No fim tudo dá certo, e se não deu certo é porque ainda não chegou ao fim.”
Que tipo de música você aprecia?
Música significativa para mim é a bossa nova. Não há uma canção específica, mas a bossa nova em geral, pela combinação que faz de jazz com samba, de tristeza com alegria. Meu ídolo desde adolescente é João Gilberto, um cara esquisitíssimo, mas um gênio musical. Nunca vou esquecer como foi vê-lo ao vivo no Carnegie Hall, em 2008. Aquele palco enorme, histórico, e ele lá sozinho com seu violão frente a um teatro lotado num silêncio assustador. Eu quase desmaiei de tanta emoção! A simplicidade e a nudez dessa apresentação foram de arrepiar. Já assisti a vários grandes nomes do jazz em vários teatros e jazz clubs em NY e em outros lugares do mundo, mas esse show foi o mais inesquecível. Contudo, se for realmente para falar de uma canção, mencionarei aqui “Chega de Saudade” que, além de ser o hino da bossa nova, fala dessa coisa que eu sinto todos os dias: saudade.
Vamos falar de saudade, então. Você sente saudade de que nestes longos anos nos EUA?
Saudade é o meu sobrenome: isso de a gente viver em outro país é bom, mas é também bem ruim. Sinto saudade todos os dias! Vivo em NY, mas meu coração fica dividido entre os EUA e o Brasil. Se não tivesse criado raízes aqui, só Deus sabe onde estaria morando. Provavelmente em Fortaleza – oh terrinha boa! – ou talvez estivesse na Itália… Minha mãe me chama de “judeu errante”. Há tantas possibilidades na vida, sempre temos que estar fazendo escolhas… um dos poemas que mais me fala é The Road Not Taken, de Robert Frost: nele, ele captura essa sensação de realização e perda ao mesmo tempo, fala de como é não poder andar por duas trilhas ao mesmo tempo e seguir em frente pensando no que poderia ter sido.
Toda chance que tenho, retorno a Fortaleza uma ou duas vezes ao ano; mal posso esperar para poder ir de novo! Ano passado, não pude ir por causa da pandemia e isso me deprimiu muito; senti-me como um passarinho sem asas. Essa é a minha dicotomia: quero estar em dois lugares ao mesmo tempo. Sinto falta de dançar um forrozinho, de comer um pastel de carne de sol bem gostoso, de caminhar na Beira-mar, de ver o pôr do sol em cima de uma duna em Canoa ou Jericoacoara, e de me balançar em uma rede na varanda da minha mãe – sinto muita falta de tudo isso!
Mais ou menos 4 anos depois que mudei para NY, voltei para Fortaleza por um tempo para pôr a cabeça no lugar, após meu divorcio. Quando nos sentimos perdidos, o melhor lugar do mundo é o colinho da mamãe. Eu achava que ia ficar de vez, mas com o tempo comecei a sentir falta da vida que tinha em NY também; eu tinha mudado muito nesses 4 anos e não me encaixei mais completamente no modus vivendi alencarino… Fiquei muito dividida e acabei voltando. Sempre tenho a impressão de que há algo faltando, tanto quando estou no Brasil como quando estou nos EUA. É difícil, mas a gente aprende a viver em paz com a saudade. Como Vinícius de Moraes diz em “Bom Dia, Tristeza”:
Bom dia, tristeza.
Que tarde, tristeza.
Você veio hoje me ver.
Já estava ficando
Até meio triste
De estar tanto tempo
Longe de você.
Se chegue, tristeza.
Se sente comigo.
Essa nostalgia passa a ser uma companheira bem-vinda quando aceitamos que ela é parte da vida. Nem tudo é felicidade o tempo todo. Se fosse assim, não teria graça… A saudade dá um tempero bem especial aos reencontros com minha família, com minha terra. Talvez por isso eu aprecie tanto o meu país e a minha cultura natal. Quando escuto brasileiros que moram aqui nos EUA falar mal do Brasil, isso me parte o coração. Claro que há inúmeras imperfeições verdes e amarelas, mas o Brasil sempre vai ser meu lar de coração e fico agradecida a Deus de ter nascido lá. Acho que eu seria uma pessoa muito diferente do que sou hoje se tivesse nascido em outro lugar.
Vamos concluir com o que?
Antes de ir, eu quero dizer que me sinto profissionalmente realizada, sou professora há mais de 20 anos e adoro estar na sala de aula interagindo com meus alunos. Para mim é fascinante acompanhar o processo de aprendizagem do ser humano e ser parte disso de uma forma ativa. Quando terminei meu mestrado fui dar aula na City University of NY. Fui professora universitária por 12 anos e depois tomei uma decisão que surpreendeu a muitos que me conheciam (até a mim mesma, na verdade): passei a ensinar em uma escola pública de ensino médio (High School) no Bronx. Durante os 2 primeiros anos ainda dei aula em uma cadeira (mantive meu vínculo com a universidade caso descobrisse que high school não era para mim, pois toda a vida tinha ensinado adultos), mas depois larguei tudo e passei a me dedicar exclusivamente a meus alunos da rede pública: é um universo tão diferente do que eu estava acostumada, que passei um bom tempo me sentindo como uma professora iniciante. Fiz até alguns cursos de psicologia da adolescência para poder entender esse microcosmo humano melhor. Quando se dá aula para adolescentes (principalmente esses que são, em maioria, de famílias de baixa renda e imigrantes, como na minha escola) você tem que ser muito mais do que meramente um professor (o que, definitivamente, já não é pouca coisa!): você é conselheira, mãe, irmã mais velha, e um pouco de tudo. Sempre tem algum drama pessoal, alguma necessidade que vai muito além do aprendizado acadêmico. O High School onde ensino – International School for Liberal Arts – é bilingue (inglês e espanhol), o que significa que os alunos têm a escolha de aprender algumas matérias em espanhol ou inglês. A maioria deles vem de países como a República Dominicana, México, Equador e outros países latino-americanos. Eles chegam aqui muitas vezes sem falar nada de inglês e passam por muitas dificuldades de adaptação, pois a escolha de deixar seu país natal não foi feita por eles, mas sim pelos pais, e até quando eles vêm animados por estar em NY etc., quando chegam a realidade é bem diferente: a cultura, a língua, a socialização, a comida – tudo é diferente Eu gosto muito de estar com eles e ajudá-los a enfrentar esses seus desafios, principalmente os da língua. Descobri que às vezes um pequeno gesto de atenção, de disponibilidade para escutar faz uma diferença enorme na vida de um adolescente. Saber que estou ajudando alguém a crescer não só academicamente me realiza. Quando me perguntam o motivo dessa loucura de passar de professora universitária a de high school, eu nem sei por onde começar a explicar. Mas essa foi, sem sombra de dúvidas, a melhor “career move” que fiz.
É importante olhar para dentro, refletir e acolher as mudanças na nossa vida (sejam elas causadas por nós mesmos ou geradas por circunstâncias fora do nosso controle) com a mente e o coração abertos. Saber escutar e perceber as outras pessoas é essencial. Especialmente quando se é professor, nos acostumamos a falar e pensamos que os outros devem nos escutar. Aprendi com o tempo que saber calar na hora certa é sabedoria. Contudo, é bom saber quando parar de escutar também, porque só você é responsável por sua vida e suas decisões. Aí é que entra a reflexão, o autoconhecimento, coisa que quando somos muito jovens é bem difícil acionar – só depois de muita prática. Já parei mais de questionar tudo e todos e querer entender absolutamente tudo, porque há muitas coisas entre o céu e a terra que escapam à nossa compreensão, como disse Shakespeare em Hamlet. Quero abraçar a vida em toda a sua magnificência e mistérios. Sou muito católica, mas li sobre outras religiões, crenças e filosofias, como o Budismo, Judaísmo e Taoísmo. Procuro manter minha mente aberta, pois o fanatismo aliena. Então, eu termino aqui com uma frase atribuída a Buda: “A vida não é uma pergunta a ser respondida. É um mistério a ser vivido.”
Brasilidade em Nova Iorque: um pouco da história da Bossa Nova