Ela é instrumentista – toca piano, teclado e flauta doce – e professora de piano, teclado, flauta doce, treinamento auditivo e apreciação musical. Elegante, ponderada, espirituosa e discreta, Cecilia do Valle foi responsável, por ocasião da reformulação do ensino profissionalizante brasileiro, pela criação do Curso Técnico em Música do IFCE – primeiro curso profissionalizante em Música de toda a rede de ensino público do Brasil. Foi instrumentista, cofundadora, arranjadora e instrumentista de vários grupos musicais na cidade. Com as obrigações acadêmicas, resolveu limitar suas atividades, mas ainda se pode ouvir eventualmente sua bela produção musical pelos salões de algumas diletas instituições. Aqui temos um resumo de vida de uma mulher de vitórias pessoais e coletivas. Resiliente e empoderada, Cecília nos conta sobre beleza, cultura, educação, e algumas curiosidades, na sala de sua casa e sempre acompanhada por um de seus pets. Ao fundo, ao longo da reportagem, se escuta Johann Sebastian Bach, seu compositor favorito, de quem também fala com paixão, simplicidade, autoridade, marcante brilho nos olhos e largo sorriso nos lábios.
Como você nos apresentaria Cecilia do Valle?
Eita! Começou pelo mais difícil! Eu penso que sou uma pessoa simples, mas essa opinião certamente não é um consenso! Nasci ‘pra ser feliz’, como me disse uma amiga há algum tempo! Então, estranho a mim mesma quando circunstâncias conseguem me ‘desligar’ dessa minha felicidade interior. Sou calada enquanto não me enturmo e tagarela dentre amigos. Detesto mentira e abomino ironia, mas não acho, em absoluto, que ‘a verdade’ precise machucar ninguém. Tenho o riso fácil. Gosto muito de sorrir. Amo os animais desde que me conheço por gente (do cavalo ao calango – e saía em defesa destes últimos mesmo, quando criança). Gente às vezes me encanta, outras vezes me aborrece. Em alguns dias sou proativa, noutros preguiçosa – e me dou esse direito! Com licença! Obrigada! Possuo um senso de justiça que às vezes preciso dominar, é verdade. E uma dificuldade ‘personalizada’ nas tomadas de decisão, admito. Mas sou tranquila. Resumo da ópera: sou do bem, eu diria.
Conte-nos sobre o que você faz para viver.
Como instrumentista, minha paixão sempre foi a música de câmera. Integrei grupos de música instrumental, dentre eles o Duo Concertante, Grupo Syntagma, Grupo Ad Libitum, Duo Piano Cênico e Grupo Synphonia, a companhei vozes como o Coral da FIEC, Côro Cantate Domino, Coral Vozes do Coração, Quarteto Alegretto, Tenor André Vidal e Sopranos Célia Cortês e Vilma Dantas (in memoriam).
No ensino, atualmente, dou aulas particulares de Música, uma vez que me aposentei no final de 2018 como professora do Instituto Federal do Ceará, escola à qual dediquei 25 anos de magistério em Música. Ingressei no Serviço Público Federal por meio de Concurso Público, quando assumi a única vaga aberta nesse certame para professor de teclado eletrônico. Posteriormente, por ocasião da reformulação do ensino profissionalizante brasileiro, fui responsável pela criação do Curso Técnico em Música do IFCE – primeiro curso profissionalizante em Música de toda a rede de ensino público do Brasil. Coordenei esse mesmo curso por 10 anos. Desde então, o IFCE é responsável pela formação musical gratuita e de alta qualidade para jovens que nele ingressam em número de 30 por semestre, por meio de concurso público. Considero uma honra ter podido contribuir para a formação de jovens músicos brasileiros , nessa instituição de ensino tão referendada e que só me trouxe alegrias e realizações profissionais. Eternamente grata ao IFCE!
Qual a sua formação?
Na minha formação geral, fui aluna do Ginásio Santa Izabel (da Alfabetização à 2ª série primária) e do Colégio Cearense – Turma de 1980. Na formação artística, fui musicalizada através do Acordeão em casa, pela minha mãe, Maria Carlota do Valle, que era professora de Acordeão, pioneira no cenário musical dos anos 50, no Ceará. Em seguida fiz o Curso Fundamental de Piano no Conservatório de Música Alberto Nepomuceno (Turma de 1980 – com apenas dois concludentes), prestando vestibular e ingressando no curso de Bacharelado em Instrumento – Piano, na UECE (única formanda da turma de 1986.ll). Posteriormente fiz Especialização em Arte-Educação IFCE/UECE.
E o que lhe distrai, lhe diverte, lhe relaxa? Você tem algum passatempo?
Muitos novos aprendizados aconteceram entre o falecimento da minha mãe, em 2015, a minha aposentadoria, em 2018, e o lockdown de 2020. Alguns deles foram os trabalhos manuais com materiais recicláveis (@cecil_atelier), a jardinagem, as aventuras na cozinha, a organização de ambientes, o resgate dos jogos de baralho, os net games, as maratonas de séries, as redes sociais e por aí continua a curtição!
Você é alguém de muitos ou poucos amigos?
Considero que sou muito abençoada nesse sentido, porque conservo amigos amados de décadas, independente de estarmos em contato direto ou não. Em tempos de isolamento social as ‘redes’ ajudaram bastante nesse sentido, por sinal. Pessoas maravilhosas que fazem parte da minha vida e da minha história, da construção do ser humano que eu me torno a cada dia. Gente do tempo de escola, de conservatório, de vizinhança, de trabalho – preciosidades mesmo. Sei que lendo essa reportagem eles se reconhecerão. Amo vocês, amigos e amigas!
E o que falar de sua família?
A minha sempre foi bem pequena, mas transbordante de amor. Logo para começar, sou filha única, criada por mãe e ‘vó’ – então, no princípio éramos três. Casei muito cedo, aos 17 anos, logo com o primeiro namorado (no mesmo ano em que terminei o Conservatório e entrei na faculdade – foi um ano que ‘rendeu’ bastante!). Essa união durou 14 anos e dela vieram minhas duas filhas: Rachel (advogada) e Lígia (psicóloga). Depois fiz um segundo casamento que durou 12 anos – 10 de união estável e 2 de casamento formal. Dessa segunda união não vieram filhos. Hoje, minha família se reduz a minhas duas filhas e eu, que moramos juntas.
Uma Mulher de Vitórias também é uma mulher de fé?
Sim, a fé é o que nos move e nos mantém de pé, o que nos faz levantar pelas manhãs, arregaçar as mangas e travar as batalhas do dia a dia. É o que mantém a esperança em dias melhores para todos, o que nos faz recomeçar, reavaliar, perdoar, acolher, dividir, aprender, prosseguir, até ‘que Deus seja servido’ (palavras da minha avó).
O que lhe dá força?
A minha vem do Alto e eu acrescentaria: por gerações. Gerações de mulheres batalhadoras, honestas, íntegras, responsáveis, companheiras, vencedoras e valorosas – apesar de todos os pesares – e cuja força vem do Criador. A força do feminino é muito peculiar, você não acha?! Ela existe em meio à sensibilidade, aliás, fica maior justamente por causa dela. É um paradoxo maravilhoso, que sempre testemunhei dentro de casa. Espero fazer jus à minha ancestralidade feminina.
Viajar é bom ou você prefere ficar em casa?
Viajar é coisa muito boa! É descobrir, é aprender, ao vivo e em cores. Eu gostaria de conhecer muitos lugares e culturas que ainda não tive oportunidade. Viagem ao exterior, por exemplo, nunca fiz. Aqui mesmo no Brasil, conheço alguns lugares e a música me levou a uma boa parte deles, por vezes para tocar, outras para ensinar, como Rio de Janeiro, Minas Gerais, Brasília, Pernambuco, Paraíba, Piauí e interior do Ceará. Viajar é bom ‘prá mais de metro’.
Como você definiria “Cultura”?
É a nossa identidade enquanto povo. É o que nos torna singulares e plurais. É necessário que ela seja conhecida, reconhecida, apropriada, defendida, difundida, como um direito da pessoa humana, pois é por meio dela que nos reconhecemos como unidade na diversidade. Não tem nada de inatingível, porque a cultura é fruto do ser humano, de sua sabedoria, vivência e produção. Há que ser conscientizada como tal.
O que é “Beleza”?
É algo bem importante. Ela está na transparência, no caráter, na atitude, no bom senso, no equilíbrio, no compartilhamento, na participação, na conduta, na sinceridade, na responsabilidade, na amorosidade, na empatia, enfim – ela é invisível aos olhos e é interessante como ela também está nos olhos e na sensibilidade de quem a vê – ou aprecia. E ela deveria ser apreciada “sem” moderação!
Como você vê a vida, de uma maneira geral?
Como uma dádiva do Divino. Uma escola de aprendizagem constante. Lições que se renovam a cada novo dia, com novas chances, novas decisões, novos frutos a serem plantados e a serem colhidos. Algo a ser respeitado em todos os âmbitos: animal, vegetal, ambiental, planetário. Porque tudo que tem vida faz parte de tudo que tem vida – são um todo só e o ser humano precisa tomar consciência disso, antes que seja tarde demais. A ambição desmedida é uma monstruosa ameaça a vida – do irmão, do ecossistema, do planeta, em micro e macro dimensões. E precisamos estar cônscios da importância da nossa saúde, em todos os níveis – física, mental e espiritual. Isso é absolutamente necessário para se encarar os desafios que a vida nos apresenta, com chance de êxito e de menos dores. No manter-se saudável reside o equilíbrio de nossa existência. É primordial cuidar de nossas vidas e saúde, ter responsabilidade sobre o que ingerimos física, mental e espiritualmente, pois cresce em nós aquilo que nos é alimentado. Bom lembrar sempre que nos ‘alimentamos’ não só pela boca, mas por nossos olhos e ouvidos.
Com que sonha a grande professora de piano?
Nessa altura da caminhada, sonho em poder ver minhas filhas firmadas profissionalmente, felizes em suas vidas pessoais, unidas nas boas horas e nas não tão boas também. Em paz, conscientes da Graça presente em suas vidas; sendo pessoas sensíveis, dignas e responsáveis, atuantes pelo bem. Tudo de bom que vier para mim além disso será considerado absoluto lucro e será recebido com absoluta gratidão.
E o que falar do Amor?
Ele precisa permear todas as coisas. Ações, decisões, declarações. Senão tudo perde o sentido. Foi o principal ensinamento do Evangelho de Jesus Cristo – simples assim e tão mal compreendido, mesmo nos meios religiosos. A falta de amor é a fonte de todos os erros.
Onde mora a sua Felicidade?
Ela está do lado de dentro. Perde tempo quem a procura fora de si. É um estado de espírito que, como a Paz, é difícil de explicar. É um sentimento tranquilo, sereno, que trás contentamento e energia de vida. A felicidade frutifica naturalmente em gestos, em palavras, em sorriso, em prazer de se estar com, de compartilhar, de querer ver o outro feliz também. É preciso ser reconhecida como tal, como essência que é.
O que você nos diz sobre o medo?
Necessário enquanto proteção, paralisante quando desmedido. Faz parte do nosso instinto animal natural – tememos aquilo que para nós é desconhecido ou nos causa dor de alguma espécie. Tenho medos que acredito serem comuns e que são vencidos diariamente, para que a vida possa continuar. Tenho medo das limitações físicas da velhice. Da incompreensão e insensibilidade humanas. Da colheita de frutos por mim mesma indevidamente cultivados durante a vida. Enfim, para fins de seguir em frente eu lanço mão da fé e da Graça. E vamo-que-vamo!
O que você planeja ou espera do futuro?
Como bem diria minha avó, “o futuro a Deus pertence”. Ele é algo que existe somente na nossa imaginação. Tudo o que temos de real é o presente, todo o mais é especulação. O que não quer dizer que não possamos ter expectativas a respeito dele. Acima de tudo, apesar de não podermos tê-lo como real, é preciso compreender que há possibilidade de que o estejamos preparando no presente. Como li recentemente num post: “Não existe prêmio ou castigo – tudo é colheita de plantio.” Nesse caso, eu poria em dúvida o termo ‘tudo’, mas, enfim, só o próprio futuro dirá, quando e se ele se tornar presente. Oremos, façamos nossa parte e esperemos!
Como você percebe o “sucesso”?
Na minha vida, o sucesso foi sempre decorrência do fazer cada coisa da melhor forma que me fosse possível, quando se me apresentou e de receber as oportunidades que a vida me propôs com ampla responsabilidade e interesse. Por minha índole natural, muitas vezes, isso aconteceu de modo imperceptível, no momento; só ficando claro depois de passado um tempo, numa visão retrospectiva de cada fato já legitimado. Lógico que nem tudo foi sucesso sempre! Mas aprender com os insucessos é de fundamental importância. Aconteceu dessa forma na minha vida artística e profissional. Na vida pessoal, meu sucesso vejo nas vidas que cruzaram e trilharam comigo o meu caminho, pelo tempo que tenham permanecido. Elas representam o meu sucesso como pessoa que ama, se doa, está presente e é reconhecida como significante.
Você sente saudade de algo ou de alguém?
Sinto muitas, principalmente de pessoas e, acima de tudo, das ‘minhas mães’. Saudades especiais dos maravilhosos professores que tive, como dos maravilhosos alunos também. Do tempo em que o clima de Fortaleza era mais ameno, do tempo em que a inflação não detonava todo o nosso salário e do tempo em que a falta de segurança e a violência não nos confinava dentro de nossas próprias casas. De andar de bicicleta, de brincar de ‘barrinho’ no interior, de sentar-me no colo dos meus tios avós amados (amo pessoas de mais idade!), de quando o Natal era esperado com ingenuidade, de cantar em coro de escola ou de igreja, de receber abraços amorosos, de sorrir juntos de bobagens (músicos geralmente têm um humor muito fácil e peculiar – não sei como explicar isso! Pode ser a sensibilidade à flor da pele), …, nossa, nem eu mesma imaginava que fossem tantas saudades.
E o que você conta do Brasil?
É a minha pátria amada, apesar dos pesares. Porque o Brasil que eu considero são as pessoas que nele habitam: brasileiros e brasileiras de bem, corajosos, resilientes, socialmente injustiçados, preconceituosamente estigmatizados, fortes, acolhedores, trabalhadores, honestos, sorridentes ainda que sem dentes – ou não, que cantam, que dançam, que sonham, que realizam, que lutam, enfim, os que resistem à minoria desumana detentora do poder econômico e à ambição exacerbada de outros. O Brasil – e nós os brasileiros – somos as pérolas deste planeta!
Fale-me de “música”.
Ela é pura e simplesmente meu dom e profissão, que, colocada em seu real patamar de importância na minha vida, sempre foi fonte de bençãos e realizações (pessoais, profissionais e financeiras). É o que eu sei fazer de melhor – literalmente! Para ela eu me preparei a vida inteira. É o meu prazer contribuir por meio dela para a formação humana e de profissionais, através do embelezamento de ocasiões, tornando-as momentos ainda mais especiais. Sem fazer distinção de repertório, seja ele erudito, sacro ou popular, a música é minha companheira de vida – ela faz parte do meu raciocínio.
Alguma curiosidade sobre você?
Vou contar três: 1. Tive treinamento auditivo intrauterino, durante o período em que minha mãe me gestou. Explico: como ela era professora de Acordeom e esse instrumento, dotado de grande intensidade sonora, se toca por sobre o ventre, tive esse treinamento auditivo por preciosos meses, o que sem dúvidas me rendeu um ouvido musical privilegiado; 2. Sou xará da Santa Padroeira dos Músicos – Santa Cecília – prometo que é por pura coincidência! Na verdade, o meu nome foi escolhido em homenagem póstuma ao meu avô materno, ‘Cecílio Chagas do Valle’, falecido muito antes do meu nascimento, com apenas 33 anos de idade. 3. Tenho 2 pets fofíssimos morando comigo: Marlindo, meu pet neto canino, nascido dia 8 de março – Dia Internacional da Mulher – de 2017. Ele tem 28kg de pura fofura e companheirismo. Ele é Bulldog Inglês e, a despeito do aspecto feroz, é uma doçura de netinho. Léo, meu pet neto felino, nos adotou pouco antes do 1° lockdown da pandemia, em fevereiro de 2020. O Léo além de lindo é um amorzinho. Em casa precisamos fazer um ‘manejo’ entre os pets, pois ainda não estão adaptados um ao outro e o Léo respeita os horários de entrar e sair, intercalados aos do Marlindo, com uma fidelidade absoluta, todos os dias na mesma rotina – voluntariamente!
O que você quer que as pessoas assimilem de sua entrevista, em termos gerais.
Em termos gerais, gostaria que ficasse claro que, apesar de ser artista e de ter tido sucesso na profissão, acredito na importância da música como parte da formação humana da pessoa. Essa pessoa – tocada pela música – é que vai fazer a diferença na sociedade. Caso ela se torne profissional da área, como eu, maravilha: vai poder contribuir na formação humana e profissional de tantas outras. A educação por meio da arte tem altíssimo poder de transformação, contribuindo para a ampliação da visão crítica e construção de valores para a vida.
Você tem uma música que a defina ou lhe seja significativa?
Bom, sendo a música o meu material de estudo e de trabalho, desde sempre, faz parte disso um mergulho mais profundo nessa arte e uma visão diferenciada, o que amplia sobremaneira a nossa apreciação. Nesse caso, eu fico mais à vontade em eleger uma obra como aquela que me seja mais relevante e significativa. Quem me conhece, sabe. A obra do compositor barroco alemão Johann Sebastian Bach, cujo equilíbrio e densidade espiritual são tamanhos, que mesmo em suas criações instrumentais, i. e., sem palavras cantadas, é capaz de comover os ouvidos mais leigos. Inúmeras vezes fui testemunha disso. A obra dele me comove, move e representa!